Travessia Cavalcante - São Jorge Out/2018


No fim de sua vida, Jean-Jacques Russeau, filósofo suíço, utilizou a contemplação e o isolamento de caminhadas pelos arredores de Paris e pelo entorno de um lago suíço como ferramenta de reflexão sobre suas percepções, decepções e críticas sobre a sociedade em que vivia. No livro “Rêveries du Promeneur Solitaire” (Devaneios do Caminhante Solitário), em meio a tristes confissões e argumentos convincentes e pessimistas no que se refere ao convívio social e a valores morais, Russeau exalta a importância e a introspecção que o contato com a natureza proporciona.

“Ces heures de solitude et de méditation sont les seules de la journée où je sois pleinement moi et à moi sans diversion, sans obstacle, et où je puisse véritablement dire être ce que la nature a voulu”.
J.J. Rousseau - Deuxième Promenade

Dispostos a utilizar a ferramenta sugerida por Russeau a fim de refletir sobre a vida e questionamentos pessoais, eu, João Paulo Barbosa e Arthur Monteiro nos embrenhamos no cerrado próximo ao entorno de Cavalcante/GO, em meados de outubro.
O intuito, além da introspecção pessoal de cada um, era realizar a travessia completa do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, saindo de Cavalcante e chegando a São Jorge.
Para tanto, eu havia planejado uma rota pela borda da Serra de Santana, com o Vão do Rio Claro a nossa direita, totalizando 60 quilômetros. Com o início do período chuvoso, havia a previsão de chuvas e trovoadas esparsas. Sabíamos que a chuva poderia nos acompanhar pelo trajeto. Penso que existem particularidades interessantíssimas quando a chuva domina a paisagem. Há uma grande resistência das pessoas em geral em se aventurar debaixo d’água. Além de perderem detalhes curiosos da fauna e da flora nessa estação, os “de açúcar” deixam de aprender a conviver com a chuva, experiência fundamental para quem gosta do campo.
Seguimos por trilha até a Ponte de Pedra, onde adentramos no cerrado, negociando constantemente com o mato e as pedras do trajeto.
Havia um considerável ganho de altitude até São Jorge, visto que Cavalcante se situa quase 600 metros abaixo do ponto mais alto da rota. Essa diferença de altitude foi “conquistada” logo no primeiro dia de expedição. Como havíamos saído tarde, terminamos o dia “escalaminhando” a maior ascensão que teríamos durante a travessia. No fim do dia, chegamos a um ponto da serra em que uma bolha no pé do João, o lusco-fusco e a conveniência do local nos determinaram o assentamento de nosso acampamento. Até ali, tínhamos caminhado treze quilômetros.
Sem termos nos molhado durante o dia, restava-nos torcer para termos uma noite tranquila. A noite chegou com uma discreta aparição da lua. Enquanto jantávamos, uma verdadeira orquestra de sons naturais tomou o local. Insetos, pássaros, mamíferos e o chacoalhar das árvores entonavam o concerto. Vagalumes e o reflexo dos olhos de animais entocados iluminavam o palco. É interessante observar tudo isso sem nenhuma interferência urbana. Os sons se amplificam, as percepções se aguçam, o receio aumenta. É tocante. É transformador. De dentro de minha barraca, observava, com o corpo cansado e os olhos pesados, a claridade que a lua criava na cobertura translúcida de meu casulo. Sem perceber, adormeci. Despertei-me no meio da madrugada por conta do barulho que fazia. Ao abrir os olhos, não enxergava nada. Tudo preto. Uma sensação horrível. Já entrando em desespero, apalpei o piso da barraca para achar a lanterna. Abria e fechava os olhos incessantemente conjecturando que pudesse ser a vista se acostumando com a escuridão. Um minuto de pânico e comecei a enxergar a silhueta de alguns equipamentos dentro da barraca. Abri o zíper e percebi que o céu estava totalmente encoberto. Não havia mais a claridade da lua. Uma tempestade era iminente. Corri para fora a fim de resgatar as peças de roupa que havia pendurado em alguns galhos. Encontrei com João fazendo a mesma coisa. Diante da água que cairia, não proferimos um comentário. O entendimento da situação era único e notório. Cada um foi se acolher em sua barraca à espera da tormenta. 
O vento aumentou, o rugido se intensificou e os bichos se calaram. Respeito total à superioridade da tempestade. O uivo do vento foi substituído pelo tamborilar das gotas da chuva na lona da barraca. Não tinha o que fazer, era deitar e esperar que aquela fina membrana de nylon me protegesse da forte chuva que despencava.
Antes de amanhecer, acordei novamente após um pesadelo. Uma situação desagradável envolvendo minha mulher me tirou o sono e me deu saudade de casa. 

O dia amanheceu com várias camadas de nuvens desconexas, proporcionando um belo visual em meio à Serra de Santana. Até o ponto onde havíamos dormido a primeira noite, tínhamos cruzado dois vales lindíssimos, um deles abrigava o rio São Domingos, responsável por erodir a “Ponte de Pedra”. A transição do vão do Rio Claro com o platô da Chapado dos Veadeiros é, sem dúvida, um dos locais mais bonitos e exóticos da região. O cerrado se dispersa e se concentra de acordo com os afloramentos rochosos e as lindas veredas do local. Subimos na diagonal de uma serra contornando e admirando as diversas formações de rochas. Totens gigantescos nos vigiavam do topo da serra. É uma pena não estarmos desenvolvidos o bastante para termos uma estrutura para trekking neste setor do Parque. É lindo.
Saímos às 10h10min, após tomarmos um reforçado café da manhã. Em expedições como essa, praticamente se faz duas refeições por dia, o café da manhã e o jantar. O resto fica por conta de pequenos lanches. Daí a importância de sair bem abastecido pela manhã. Normalmente levo alimentos pré-cozidos ou instantâneos. É vital estar com a mochila leve e compacta durante a caminhada. Para esta viagem, a mulher do Arthur, Isabela, nos forneceu alguns kits minuciosamente preparados para nossa empreitada. Jantamos risoto ao fungui e tomate seco, e para o despertar tínhamos um delicioso musli, carinhosamente preparado por Isa. 
Conheci o Arthur e a Isabela através do João Paulo. O casal mora em uma pequena casa - cabana - (construída por eles!) nos arredores de Cavalcante, onde tentam levar uma vida simples, desapegada e à margem da sociedade. Estive no local em outra oportunidade, quando vi, na prateleira de Arthur, o livro “Walden”, de H. D. Thoureau. Coincidentemente, ou não, essa obra trata do isolamento do autor em uma cabana na floresta para escrever sobre a possibilidade de se levar uma vida mais simples, íntegra e autêntica. Esse livro me influenciou muito.  
Vencida a serra, andamos pela parte de cima do platô praticamente até o nosso destino. Em um dos campos abertos por quais passamos, vimos um casal de veados e, na sequência, duas cobras. Os veados nos olharam apreensivos e fugiram lentamente. Já as cobras, nem se moveram. Por sorte as vi antes de pisar, apesar de, aparentemente, não serem venenosas. 


Cruzamos alguns rios pelo trajeto. Para atravessá-los, alguém “nadava” entre os galhos e ramos até a outra margem levando a corda que usávamos para cruzar as mochilas através de uma tirolesa improvisada. Levamos aproximadamente 5h30min para caminhar vinte e dois quilômetros. Decidimos parar na borda do Rio Preto, após as “Sete Lagoas”, em um local plano e limpo. Perfeito para nosso pernoite. Com o rio ao lado, tudo se tornou mais fácil: cozinhar, tomar banho, lavar louças e contemplar!




No último dia, acordamos cedo para tentar finalizar a travessia. Saímos às 08h00min. Tínhamos pela frente 32 quilômetros, sendo que os últimos dezoito seriam pela trilha das “Sete Quedas”. O dia estava muito quente. A chuva parecia ser inevitável na parte da tarde. Desbravamos um trecho de cerrado muito fechado e com muitos blocos de pedras grandes antes de chegar no acampamento das “Sete Quedas”, no Rio Preto. A partir desse ponto, andaríamos por trilhas conhecidas até São Jorge. 

No Rio Preto, aproveitamos para nos refrescar e comer nosso último risoto. Enquanto cozinhávamos, o tempo fechou no horizonte, mas a chuva acabou desviando para o lado oposto que iríamos. A sorte está mesmo do lado de quem arrisca!    
Mais um curativo nos pés do João e seguimos para São Jorge. Vale destacar que este seria o último cuidado com os pés dele na viagem. Ao todo, gastamos um rolo de esparadrapo e mais de dois metros de “Silver tape” nos pés dele. Extremamente experiente, João pecou no romantismo de utilizar uma bota de couro (comprada no Tirol - Dolomitas/IT) sem estar devidamente amaciada para a viagem. Ele me confidenciou, após terminarmos o trekking, que lutou constantemente contra a dor e o desconforto a fim de concluir a travessia.
Seguindo a trilha das Sete Quedas, inúmeras vezes me assustei com barulhos no mato. Cobras não são animais agressivos, mas é preciso tomar cuidado quando se está no ambiente delas. Uma técnica que uso muito é andar com meu trekking pull (uma espécie de vara para auxiliar a caminhada) revolvendo o mato e as pedras antes de pisar. É como se eu avisasse para os bichos que estou passando! Não se deve confiar somente nessa técnica, mas ajuda muito.     
Caminhávamos há quase sete horas. O dia ia se finalizando e tínhamos uma última preocupação: a passagem pela portaria do Parque. Iniciamos nossa travessia por Cavalcante, onde não há portaria ou acesso. Todo o trajeto havia sido planejado por trechos sem trilhas. Por conta disso, não tínhamos dado entrada nos registros do Parque. Como explicaríamos a situação para os rigorosos guarda-parques, era uma incógnita.
Vínhamos pensando em algum discurso ou coisa parecida quando um casal entrou na portaria na nossa frente. Como já estava escuro, aproveitamos a “oportunidade” para sair pelo portão lateral, que se encontrava aberto. Ao cruzarmos o limite do Parque, um dos seguranças, saindo do banheiro, gritou:
- Ei. Opa! Tem que passar pela portaria.
Arthur, último da fila, proferiu algumas palavras desconexas e incompreensíveis e continuou andando. Diante da cena pouco provável àquela hora do dia (três sujos andarilhos apinhados de equipamentos), creio que o guarda-parque deve ter nos olhado, já desaparecendo no escuro, e pensou: “Deixa pra lá. Não vale a pena! Vai atrasar minha cerveja”...
Chegando em São Jorge, conseguimos uma carona até Alto Paraíso. A cidade estava lotada por conta de um evento musical. Sem mesmo saber onde dormiríamos, fomos comer. Após nos instalarmos, fomos ao show do Amanita Muscária, antiga banda de rock de Brasília. Durante o show, encontrei com um amigo de infância. O “Chapolin” morava na quadra vizinha a minha e ficou famoso na adolescência por fugir de moto constantemente de barreiras policiais. Diz-se por aí que até hoje há uma recompensa dentro do círculo policial para quem capturá-lo.
Entre tantas histórias de fugas espetaculares contadas por Chapolin, fiquei acanhado em contar sobre minha recente fuga do guarda-parque!
No dia seguinte, voltando para Brasília, eu e João viemos escutando um CD do Red Hot Chilli Pepper. Com o encarte na mão, cantávamos como dois adolescentes no carro, curtindo o horizonte nublado da rodovia.
Em um trecho da estrada, João, sempre com detalhes históricos e geográficos de tudo, apontou para uma depressão e disse:
- Aqui é o Estreito da Piedade.
Lembrei-me, então, de tantas outras toponímias destacadas por ele. Da Antártica à Chapada dos Veadeiros, dezenas de nomes aprendi com João: Lemaire Channel, Monte Rio branco, Mulungu, Baleia, Peito de Moça, Hovgard Island, Serra do Ferro de Amolar, Pico do Ministro, Estreito da Piedade e tantos outros.
Hoje entendo que uma boa amizade é feita de boas viagens e uma extensa lista de toponímias. 

“We’ve got to move it
If we want to do our best
We’ve got shake it
If we want to keep it fresh”
Red Hot Chili Pepper
Turn it again

*Crédito das fotos: Arthur Monteiro

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