quarta-feira, 20 de abril de 2016

Volta da Serra do Espinhaço - MG


“Some of the best feelings in life are experienced in moments of overcoming immense challenges to claim meaningful rewards”.
Iron war – Matt Fitzgerald

Há alguns meses atrás, quando planejei essa viajem pela região de Diamantina/MG, estipulei um percurso que circundasse a cidade e cruzasse a Serra do Espinhaço por seus mais belos pontos. Grudado no Google Earth por algumas madrugadas, finalizei uma volta de 350 quilômetros saindo e chegando à cidade de Diamantina. Olhando para a rota finalizada, imaginava como seriam (ao vivo) vários pontos daquela linha por onde passaria.


A rota em meu GPS era extremamente promissora. Muitos singles tracks e afloramentos rochosos pelo percurso.
Uma das dificuldades em planejar viagens com o auxílio do Google Earth é que a imagem, por mais ampliada que seja, não revela o tipo de terreno pelo qual se quer passar.





Já em Diamantina, organizando os equipamentos para a partida, encontrei meu parceiro de viagem, o Assis. Lá, ele se deu conta de que havia esquecido o eixo dianteiro de sua bike, o que nos custou a manhã seguinte para resolver. 
Ainda assim, zarpamos às 11h50min em direção ao povoado de Biri Biri. Com dois quilômetros rodados, o pneu traseiro da bike de Assis rasgou, nos obrigando a fazer um manchão sob um sol de 40°. Resolvido o problema, seguimos viagem ainda por uma estrada de terra em boas condições. Após tomarmos a direção Leste, entramos em um “single track” que seguiu até o famoso “Caminho dos Escravos”, pelo qual não foi possível pedalar devido às grandes pedras soltas do local. A progressão foi lenta e penosa. Carregamos muito as bikes. Resolvemos finalizar o dia no povoado de Mendanha/MG, onde resfriamos as cucas nas calmas águas do rio Jequitinhonha.


Procurando um local para dormir, nos indicaram a chácara do Ito, que nos recebeu e contou todos os planos que tinha em vida... Sem ter onde comer, terminamos o dia no posto de gasolina da vila (menu: arroz com frango e duas rodelas de tomate). Após uma tranquila noite de sono, estávamos de volta ao posto de gasolina. Desta vez para o desjejum (menu: 2 pães de queijo (gigantes) e um pingado.
Às 09h30min estávamos subindo uma interminável “piramba” e fazendo a digestão ao mesmo tempo. No final dessa subida, entramos em uma estradinha de terra (praticamente intransitável) e despencamos em direção ao vale do Jequitinhonha. Margeando o rio, pude presenciar o isolamento em que vivem algumas famílias (longe de qualquer lugar). Uma mata seca envolvia as margens do rio por onde tentávamos avançar em direção a São Gonçalo do Rio das Pedras.
Já nesse trecho, me surpreendi com a dificuldade de progressão. Muitas pedras e subidas que na imagem do Google Earth não eram possíveis observar. Moral da estória: muito empurra-bike, muito calor, pouco vento, e poucos quilômetros rodados.

Faltando 25 quilômetros para São Gonçalo, chegamos a um ponto onde o mapa indicava a presença de um povoado de nome Itapeva. Contudo, nada havia no local a não ser um casebre na beira da estrada. Já esgotados pelo difícil percurso, resolvemos pedir um pouco de água no local. Recebeu-nos uma senhora de nome Tereza, a qual, sem que pedíssemos, nos serviu rosquinhas e um café de outro mundo. Discutindo o restante do dia com o Assis, comentei que havia pela frente uma grande subida. Antes que Assis comentasse algo, Dna. Terezinha completou:
- Uma?? Tem é muita!!
Não era bem o que queríamos ouvir, mas... 
Caramanholas e “panças” cheias, agradecemos Dna. Terezinha pela presteza e seguimos viagem.
Mais uma vez a rota nos guiou para a margem de um afluente do Jequitinhonha, não sem antes escalar uma longa subida.
Entramos, então, em uma área de garimpo, onde havia uma placa com a frase:
“Não entre! Propriedade particular. Cachorros ferozes, famintos e desobedientes”.
Seguir ou não seguir? Era a questão. O problema é que, com a rota planejada em execução, torna-se praticamente impossível criar outro caminho. Seguimos adiante, com cuidado extra para não nos depararmos com o mau humor dos garimpeiros e seus cachorros desobedientes.









Por sorte, não encontramos nenhuma alma pelo caminho. Cruzamos o rio Jequitinhonha mais uma vez e permanecemos em sua margem até chegar a uma ponte de nome bem sugestivo: “Ponte do Acaba Mundo”. Se o mundo havia acabado, eu não sabia, mas nossas energias sim. Havia ainda quatro quilômetros de uma interminável subida até São Gonçalo do rio das Pedras. Chegamos extenuados e famintos.
Ao nos instalarmos, nos sugeriram comer no único local aberto aquele horário, o bar/restaurante de Dna. Lucília.
Apesar de o cardápio ter um só prato, Dna. Lucília me recebeu dizendo:
- Diga lá meninão. O que vai querer?
Senti-me extremamente grande e forte com o vocativo utilizado por ela, quando Assis entrou no recinto e Dna. Lucília continuou:
- E você meninão? Vai querer o mesmo que ele?
Na sequência, um conhecido de Dna. Lucília passou em frente ao bar e acenou, momento em que ela respondeu:
- Oi meninão. Tudo bão cocê?
Não precisou de muito tempo para que eu voltasse a me conformar com meu porte franzino.
Comemos um prato sortido com temperos e ingredientes locais. Jamais esquecerei aquele jantar. Comida caseira sem frescura e saborosíssima.
Saciando a fome, eu e Assis comentávamos como havia sido “punk” o dia. Eu disse que não imaginava como seriam os dias seguintes, mas que teríamos muitos trechos parecidos. Nesse momento, Assis me confessou que não seguiria a viagem, pois se sentia desgastado e que o nível técnico e físico da viagem estaria um pouco acima do que estava disposto a fazer.
E realmente ele tinha razão. O percurso também havia me surpreendido. Ainda tentei convencê-lo a seguir, mas Assis tomou sua decisão e eu, com respeito, aceitei. De fato, fazer uma viagem como essa sem estar “pleno” na empreitada não é lucrativo.

Dormi um pouco surpreso com a informação, mas tive que me concentrar em readaptar o restante de minha viagem, uma vez que sozinho a estória é outra. Deve-se reduzir qualquer chance de algo ruim acontecer. Tudo tem que ser calculado e realizado com cautela, pois na ocorrência de um sinistro só uma pessoa poderá sanar o problema: você mesmo!
Na manhã seguinte, eu e Assis nos despedimos e seguimos em direções opostas. À minha frente eu tinha ainda quatro dias até meu destino. Sem a menor noção de como seria o resto da viagem, segui adiante, confiante em meu equipamento, em meu planejamento e, sobretudo, em meu condicionamento.
O fato é que, apesar de não saber o que vem pela frente, é imperativo estar preparado para o pior dos cenários.
De São Gonçalo até Córregos, onde pernoitei nesse dia, não tive grandes surpresas com o percurso. Muito estradão e, no fim do dia, uma laje de pedra situada a 1200 metros de altitude. Belíssima vista da região do Espinhaço!


Descendo do platô em direção à cidade de Santo Antônio do Norte, empolguei-me com o downhill e, em um trecho mais técnico, fui parar no meio de um arbusto. Por sorte, levei comigo apenas leves escoriações.
Chegando ao vilarejo onde dormiria, deparei-me com uma linda igrejinha no estilo barroco. Era a igreja de Nossa Senhora da Aparecida, do séc. XVI. Enquanto tirava fotos da igreja, ouvi o som de um saxofone ao fundo e fui checar de onde vinha. Acabei curtindo do belo repertório de Alceu, um morador de Córregos que toca todas as tardes ao lado da igreja.
No início da noite, após ter descansado um pouco, retornei à igreja a fim de conhecer seu interior. Ao lado de fora, havia um garoto de aproximadamente 17 anos. Manuelino se identificou e perguntou se eu era o “bicicleteiro”. Respondi afirmativamente e o indaguei porque só havia homens na missa. Ele me explicou que na igreja havia um horário de missa para homens e outro para mulheres.
- É a cultura do padre moço. Acrescentou Manuelino.
- É para incentivar os homens a ir à igreja. Completou. Sem entender direito, fiquei matutando se a lógica para atrair homens à missa não seria exatamente o contrário; misturar homens e mulheres. Vai entender?

No dia 31/03, segui em direção à Cachoeira do Tabuleiro, uma das mais altas do Brasil. Estava ansioso para conhecê-la, apesar de que sabia que teria um duro dia pela frente. Deveria fazer a travessia Tabuleiro – Lapinha da Serra de bike, ou seja, carregaria minha bike nas costas por boa parte da longa subida que dá acesso à parte superior da cachoeira.
Antes de chegar à entrada do parque, fiquei pensando se encrencariam com minha entrada portando uma bicicleta. Mas, para meu alívio, não havia ninguém na portaria do parque. Creio que por ter sido dia de semana. Pela mesma razão, realizei a travessia do parque sem encontrar uma vivalma, o que tornou o dia ainda mais silencioso e harmônico.
Carreguei minha bike nas costas por quase uma hora durante a subida do platô. Apesar do esforço, a vista lá de cima é compensadora. Foi um dia bem “travado”. Muitos trechos sem condições de pedalar pelo percurso. 
Chegando a Lapinha da Serra, hospedei-me na casa de Dna. Socorro, hospedagem humilde e aconchegante. Tudo o que precisava.



No quinto dia de viagem, minha intenção era dormir na cidade de Andrequissé, totalizando 70 quilômetros ao final do dia. Não sabia se haveria trechos complicados no decorrer da jornada.
Saindo de Lapinha da Serra, passei por uma velha estrada em meio a um afloramento rochoso. Por conta da beleza cênica, o local se transformou em ponto turístico com o sugestivo nome de “Jardim de Pedras”.
Esse dia, provavelmente, foi o mais isolado da viagem, passei por lugares pouco frequentados e distantes de qualquer civilização.

Após o “Jardim de Pedras”, o deslocamento se tornou mais dinâmico, permitindo-me chegar a Andrequissé ainda no meio da tarde. Diante disso, resolvi esticar um pouco mais e dormir em Datas, “currutela” que se situava 20 quilômetros depois. 
Cheguei a Datas no fim do dia e logo me deparei com algumas pessoas antissociais (diga-se mal encaradas) na praça principal.  Procurei por uma pousada e me indicaram apenas uma pensão localizada no posto de gasolina. Ao conferir o local, não senti uma boa energia vinda dos hóspedes... No bar do posto, pedi uma coxinha (que com certeza era do dia anterior) e uma Coca. Analisando minha situação, empurrei a coxinha pra dentro, conferi o mapa e a distância que ainda tinha pela frente. Apesar do cansaço acumulado do dia, minha intuição me pressionou a não dormir naquele local.



Sem pensar muito, abasteci minhas garrafas com água, subi em minha bike e, às 19h30min, me joguei mato adentro (já escuro) a fim de cumprir os últimos 45 quilômetros que faltavam até Diamantina. Havia diante de mim uma trilha de 15 quilômetros e mais 30 de estrada de terra. 
Deveria confiar cegamente em meu aparelho de navegação, visto que não enxergava nada além de 2 metros de trilha em minha frente. Com uma temperatura extremamente agradável, segui vagarosamente pelo terreno pedregoso às margens de um riacho. Por duas vezes, ao cruzar o rio, perdi a trilha; nada que dez minutos de quebra-cabeça não resolveram. Minha tensão (causada pela preocupação em acontecer algo que fugisse ao meu controle) foi aliviada quando cheguei à estrada de terra que deveria seguir até Diamantina. Contudo, faltando uns 15 quilômetros para a chegada, em um breu total, dois motoqueiros pararam enquanto eu passava óleo na corrente de minha bicicleta. Perguntaram para onde eu estava indo e com quem. Meio assustado, respondi que estava perdido, esperava por um amigo e que seguiria para São Gonçalo (a fim de não deixar pistas de minha rota e condição).
Os dois, ao contrário do que pensei, eram boa gente e me sugeriram dormir em uma vila próxima dali, alegando que seria perigoso prosseguir, pois, no dia anterior, uma fazenda havia sido assaltada e os bandidos estavam foragidos pela região.
Pronto. Era tudo que eu não precisava ouvir. Daquele momento em diante, segui tenso. Medo de dar de cara com vagabundos armados em meio a minha aventura. A tensão foi aumentando à medida que minha comida e água se esgotavam. Faltando cinco quilômetros, avistei as primeiras luzes de Diamantina. Estava quase lá. Já me sentia exausto e com início de hipoglicemia (minha comida havia acabado) quando alcancei os arredores de Diamantina.
Ainda que me sentisse mais aliviado por saber que estava chegando, não me tranquilizei enquanto não pus as “sapatilhas” no hotel. Tomei um merecido banho e fui me despedir da bela Diamantina, pois voltaria para casa no dia seguinte. Tomando uma cerveja bem gelada no centro histórico da cidade, fiz um rápido balanço da viagem que se encerrava.

Concluí que havia sido uma das mais exigentes e tensas empreitadas que havia feito. A mais contrastante também. Em meio a uma região de beleza cênica incrível, os vestígios de violência aparecem por toda parte. Casos de roubo foram pauta em diversos lugares por onde passei.  
É impressionante como não há lugar que escape às favelas e usuários de drogas ociosos. Esse é um dos retratos do Brasil, infelizmente.

Abraço.

1º dia
28/03/2016 Diamantina – Mendanha
Dist: 31,5 km
Média: 11 km/h
Asc: 407 m
Tempo: 2h52’

2º dia
29/03/2016 Mendanha – São Gonçalo do Rio das Pedras
Dist: 55 km
Média: 10 km/h
Asc: ?
Tempo: 5h27’






3º dia
30/03/2016 São Gonçalo do Rio das Pedras - Córregos
Dist: 73 km
Média: 14 km/h
Asc: 1926 m
Tempo: 5h13’

4º dia
31/03/2016 Córregos – Lapinha da Serra
Dist: 56 km
Média: 11 km/h
Asc: 1715 m
Tempo: 5h06’

5º dia
01/04/2016 Lapinha da Serra - Diamantina
Dist: 143,7 km
Média: 14,8 km/h
Asc: 2960 m
Tempo: 9h40’



Agradecimentos:
D´stak academia
Bike Brothers
Exceed
Kailash Team LAF
Mundo Terra
Sidnei  Assis
Tião Magu (in memorian)