Transmantiqueira - bike de Juiz de Fora a Atibaia
A fé vai onde quer
que eu vá
Oh! Oh!
A pé ou de avião...
Mesmo a quem não tem
fé
A fé costuma
acompanhar
Oh! Oh!
Pelo sim, pelo não...
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma
faiá...”
Andar com fé
Gilberto Gil
Está lá no Wikipédia: “fé é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a
considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério
objetivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou
fonte de transmissão”.
Ao se conhecer os problemas e detalhes
envolvidos em uma viagem de bike, torna-se difícil depositar na fé a
responsabilidade do sucesso. Apesar de ter crescido em uma família extremamente
católica, sempre fui adepto ao ceticismo.
A lógica sempre me convenceu,
até o dia em que passei meu primeiro sufoco voando de asa delta. Engolido por
uma nuvem a mais de dois mil metros de alturta, sem saber para onde era a terra
e para onde era o céu, segurava firmemente a barra de controle da asa e rezava
para sair daquela turbulência sem fim.
Foi assim que aprendi a ter
fé. Em inúmeras ocasiões que o domínio da situação fugiu do meu controle, lá
murmurava eu: “Deus me livre”, “Iemanjá que me ampare”, “Deus que óia!”. Apesar
de não ser adepto de uma religião específica, sempre identifiquei na natureza
uma energia diferente. Uma força pulsante sem explicação. E é aí que se
encontra a minha fé.
Quando pensei em cruzar toda a
extensão da Serra da Mantiqueira de bike, além de um detalhado planejamento,
precisei de fé, diga-se: precisei aderir de forma incondicional à possibilidade
de transpor toda aquela cadeia de montanhas pedalando com absoluta confiança na
ideia.
1º dia 24/09
Juiz de Fora –
Taboão
Dist: 107km
Asc: 2405m
E assim parti. Em Juiz de
Fora, acompanhado pelo amigo Guilherme Gonçalves, iniciei a interminável série
de sobe-e-desce morros. Zerei o odômetro às 11h00min
do dia 24 de setembro deste ano. Havia estipulado uma rota de 540 quilômetros
até a cidade de Atibaia. Da partida até a chegada, a ideia era percorrer uma
média de noventa quilômetros por dia, parando para pernoitar nas aconchegantes
cidadezinhas encrustadas nos vales da Mantiqueira. No primeiro dia, percorremos
107 quilômetros até a cidade de Taboão.
Passando pela Serra do Funil, contemplando
o belíssimo visual, com a lenta progressão morro acima, sentimos o que nos
aguardava. A Mantiqueira nos dava as boas vindas! Fora o fato de termos saído
tarde, o exigente percurso nos atrasou a chegada. Já sem a luz do dia,
despencamos a última descida em direção a Taboão. Havíamos reservado um quarto
na pousada da Dna. Joaninha. Na entrada da cidade, iluminada pela luz de um
poste, uma mulher acenava para nós. Descartei a possibilidade de ser a Dna.
Joaninha, mas, ao me aproximar, ouvi:
- Oi! Sou a
Joaninha. Venham por aqui. A pousada é logo ali.
Faminto, sujo e
cansado, agradeci a ela pela recepção e a indaguei onde poderíamos comer. Inacreditavelmente,
ouvi de Dna. Joaninha que nosso jantar já estava preparado. Não podia ser! Tudo
o que sonhávamos.
Tudo parecia
perfeito até que Dna. Joaninha nos mostrou nosso quarto. Em minha imaginação,
um lugar sujo, asqueroso, claustrofóbico e desconfortável é um cativeiro de
sequestro, sendo que o quarto que Dna. Joaninha havia selecionado para nós era
uma categoria abaixo. Com 4 m², sem banheiro, sem ventilação e todas
as paredes mofadas (sou extremamente alérgico), não havia outra opção, senão
ter fé que não seria tão ruim. Passei a noite em claro com uma toalha úmida no
nariz a fim de minimizar a crise de espirros. Após uma breve cochilada, fui
despertado por uma baratinha que dividia a cama comigo. O cansaço era tal que
apenas pedi licença para a nojenta e dormi a meia hora que precedia o raiar do
dia. Ao acordar, arrumei as tralhas na mochila e pedi a conta para Dna.
Joaninha. Sorridente, ela disse:
- Tá bom pra quem
Dna. Joaninha? Resmunguei.
Admitindo o malogro
da situação, pagamos e seguimos viagem.
2º dia 25/09
Taboão – Bocaina de
Minas
Dist: 77,2km
Asc: 1963m
Com menos de um
quilômetro, nos deparamos com uma subida longa e íngreme para saudar o dia! A
cada curva da maldita subida, fazendo uma força do cão e rangendo os dentes, eu
enxergava a imagem de Dna. Joaninha acenando!
Após 12 quilômetros,
paramos em Itaboca a fim de conhecer a cachoeira do Boqueirão da Mira; um belo
corte na pedra por onde passa o rio. Saindo de Itaboca, mais sobe e desce!
Pegamos um pequeno trecho de asfalto entrando em direção a Passa Vinte, mas
após cinco quilômetros retornamos para a terra “escalando” uma rampa
interminável. Saímos de 800 metros e só paramos de subir na cota 1250, numa
lapada só! Mantivemos nossa rota pedalando mais vinte quilômetros por esta
cota. Os quinze últimos quilômetros do dia foram despencando até Bocaina de
Minas.
3º dia 26/09
Bocaina de Minas –
Passa Quatro
Dist: 91km
Asc: 1926m
Às 10h50min do dia
26 de setembro, partimos em direção a Passa Quatro. Após Santo Antônio do Rio
Grande, subimos pelo vale até a cota 1500. Fé nas pernocas! Mantiqueira pura. Visual
de tirar o fôlego. Baixamos até 1300 metros, até a comunidade de Monte Belo, onde
paramos para lanchar. Com a energia reposta, voltamos a queimar as pernas
subindo novamente até os 1550 metros, de onde, enfim, despencamos até Itamonte.
Nesta cidade, paramos para comer de novo.
Em frente à padaria, deitado no chão
com o bucho pra cima, eu tentava digerir os quatro pães e os dois copos de
caldo de cana que acabava de devorar, quando um senhor magro de cabelos brancos
discretamente me cutucou e perguntou:
- Ooopa! Cêis tão
viajando né? Óia, do jeito que tem morro por aí, vô dá uma dica pro cêis fazê
as currva mió!
Sentado em sua Caloi
Berlineta ano 1972, Seu Lázaro explicava empolgadíssimo como não perder o
controle em uma curva fechada!
- Vai virando o
guidão devagarim, e aí cêis dá uma biliscadinha no frei traseiro e decha a
rabeira deslizar um cadim. Só num pode perdê o controle, tem qui tê fé...
Atento aos
ensinamentos de Seu Lázaro, eu percebia que a fé, mais uma vez, marcava a sua presença
na viagem.
Para chegar a Passa
Quatro, onde dormiríamos, passamos paralelamente à crista do trekking mais
famoso do Brasil: a Serra Fina. Passa Quatro fica encrustada no vale do rio
homônimo, e do alto tivemos a oportunidade de apreciar a bela, organizada e
pacata cidade. Meu amigo Tatá, em outra oportunidade, havia se hospedado com o
saudoso Dentinho e a querida Tati por lá, e com propriedade me sugeriu um belo
lugar para esticar as costas. No Hostel Casarão, a Tia Doca nos recebeu como
filhos. Comunicativa como todo bom mineiro, Tia Doca nos contou toda a história
do velho casarão. Trabalhava há quarenta e cinco anos no local, desde quando o
Casarão ainda era uma casa de família. Sugerido por Tia Doca, fomos
experimentar uma cerveja artesanal da cidade, o que serviu para intensificar o
sono que chegava.
4º dia 27/09
Passa Quatro –
Delfim Moreira
Dist: 52,9km
Asc: 1714m
Aproveitando o
aconchegante colchão, perdi a hora e, mais uma vez, atrasamos a partida. Para
esquentar as pernas, já no começo do dia, pegamos uma subida de 13 quilômetros,
ganhando 900 metros de altura só nesse trecho. Finalizamos o martírio a 1640
metros de altitude. Apesar do esforço hercúleo, o visual foi compensador. É inacreditável
a vista da cordilheira da Mantiqueira. Foi possível avistar com clareza a Pedra
da Mina e os picos do Itaguaré e dos Marins, famosos na cordilheira.
Descemos para
Marmelópolis (1200 m), onde recuperamos um pouco de nossas energias com um
“balde” de 700 ml de açaí cada um. Desta cidade até Delfim Moreira, nos
restavam vinte quilômetros. Achando que seria tranquilo, equivoquei-me. Uma
“parede”, logo na saída da cidade, nos levou a 1400 metros de altura.
E então, após um
pequeno trecho plano, por um vale, voltamos a escalar. Uma longa subida de mais
ou menos dez quilômetros serpentando as montanhas nos catapultou até os 1700
metros. Paguei um ano de pecados. Incrédulos com o tanto que havíamos subido,
observamos o outro lado da montanha. Fatigados, mas felizes, descemos quinhentos
metros por uma estradinha sinuosa entre pequenas fazendas no vale até chegar a
Delfim Moreira.
Como havíamos
chegado relativamente cedo, resolvemos fazer uma faxina nas bikes. Procurando
por um local onde limpar as correntes, passamos em frente a uma oficina de
carros (JC Centro Automotivo) e, explicando o que procurávamos, o proprietário,
Juninho, mantendo a boa tradição de acolhimento mineiro, nos emprestou
querosene e abriu suas instalações para que pudéssemos dar um banho nas magrelas.
Ficaram como novas!
Na pousada, após um
merecido banho, foi a vez de faxinar o armário. Afinal, era o quarto dia de
viagem. Lavei as roupas e reorganizei os suprimentos que ainda tinha. Pronto!
Tudo estava em dia e preparado para continuar. Que viesse a temida subida para
Campos do Jordão!
Delfim Moreira –
Campos do Jordão
Dist: 63,8km
Asc: 1354m
A saída que havia
estipulado em minha rota contornava a bela igreja da cidade e subia em meio a
um enorme vale em direção à divisa dos estados de Minas e São Paulo. Apesar de
não ter religião, aproveitei a passagem pela igreja para recarregar minha fé.
Afinal, a subida seria longa!
No percurso que
fazíamos, a divisa de estados era marcada pela entrada no Horto Florestal da
cidade de Campos do Jordão. Nesta região, as araucárias tomam conta da
belíssima paisagem. Da divisa até a cidade, seriam 30 quilômetros de descida. Mas,
como nada é de graça, logo na entrada do Horto, a chuva que era esperada para o
dia despencou. Uma puta chuva de granizo a 1800 metros de altitude em um dos
locais mais frios de São Paulo. Ave Maria! Foi foda! Fé inabalável...
Apesar do frio
congelante, a cena era bonita; o chão coberto por bolinhas brancas, o barulho
do granizo batendo no capacete e no anorak e a floresta de araucárias encoberta
por neblina. Depois de dez minutos, havia um rio de lama na trilha. Por conta
disso, a pastilha do freio traseiro foi-se embora. Tentava me manter em
equilíbrio na interminável e gelada descida administrando a frenagem da bike com
o freio dianteiro e um leve toque no traseiro, da mesma forma como havia me
ensinado Seu Lázaro. Após uma hora de martírio, chegamos à casa do Ivan Pires,
onde tomei um banho quente e colocamos as coisas em ordem antes de bater um bom
e produtivo papo com meu amigo de corrida de montanhas.
6º dia 29/09
Campos do Jordão –
São Francisco Xavier
Dist: 63,9km
Asc: 1019m
Eu precisava
descansar. O frio, a chuva, o acúmulo da viagem, tudo havia me deixado exausto.
Por conta disso, dormi demais e saímos somente ao meio dia. Na casa do Ivan, havia
me empanturrado de carne na noite anterior, e, creio que por isso mesmo, acordei
me sentindo mal. Logo na primeira subida do dia, o enjoo e a fraqueza me
derrubaram! Ainda assim, segui tocando, pois o cronograma era apertado.
Descemos de Campos até Sapucaí Mirim por uma antiga estradinha de terra. Em
Sapucaí Mirim, sentindo-me muito fraco, resolvi almoçar. A única opção era um
self service “sujão” que havia na praça. Não era a coisa mais sensata a se
fazer, mas fiz um pratão ali mesmo. Finalizando o almoço, deitei no banco da
praça para fazer a digestão. Vinte minutos depois, acordei de um sonho meio
louco e voltamos aos pedais. Na saída da cidade, percebi algumas nuvens negras
se formando no alto dos morros por onde passaríamos. Em meio à subida, me dei
conta de como continuava fraco. Creio que estava com uma virose. Pedalei devagar
e suando frio, contando cada quilômetro. No final da subida, paramos em um
boteco na estrada e tomei uma coca para ver se aliviava o enjoo. E então a
chuva nos pegou. Com a água caindo, o frio somou-se ao enjoo e à fraqueza. Nada
agradável. Uma hora depois, com muita fé, chegávamos a São Francisco Xavier, aonde
cheguei ensopado e sem sentir os dedos dos pés.
São Francisco Xavier
- Atibaia
Dist: 99km
Asc: 2381m
Para o último dia de
viagem, havia a previsão de chuva forte. O tempo amanheceu fechado e frio.
Saímos às 11h00min sem saber o quanto pegaríamos de chuva. Não obstante as pernas
doídas e cansadas devido ao acúmulo dos dias, eu me sentia melhor em relação à
virose. Passamos por um trecho de floresta belíssimo entre São Francisco Xavier
e Joanópolis. Com quarenta quilômetros, apesar da previsão e das nuvens negras
em nossas cabeças, ainda não havíamos nos molhado. Estávamos fugindo da chuva; algumas
gotas começavam a cair, colocávamos o anorak. Mais à frente e sem chuva, tirávamos
o anorak. Ameaçava chover, anorak novamente.
O tira e põe capa de chuva seguiu o dia inteiro. Exercitando minha fé, criei
um mantra pessoal a fim de trocar uma penitência por outra. “Frio sim, chuva
não, frio sim, chuva não”, eu seguia mentalizando. E deu certo. Chegamos
anoitecendo em Atibaia sem termos nos molhado.
Logo que entramos na
casa de meu amigo Cristian Fuchs, a água despencou pra valer. Que alívio!
Sentia dor em tudo que era canto, mas a viagem tinha acabado.
A Mantiqueira havia sido
conquistada. Ou lembrando Sir Edmund Hillary:
“It is not the
mountain we conquer, but ourselves”
Sentirei saudades
das montanhas, das intermináveis subidas, das casinhas simples perdidas em meio
aos vales, dos amigos que me acolheram em suas casas e, sobretudo, de pessoas
como o Seu Lázaro, que conseguem nos cativar e alegrar em meio a encontros
incertos e casuais. Por diversas vezes na viagem, em lugares completamente inusitados,
deparei-me com inúmeras manifestações de fé; um pequeno oratório em meio a uma
subida, uma charmosa igrejinha no topo da montanha ou um terço pendurado na
cerca da estrada. A crença no impalpável segue por todo lugar. A fé vive, ou
melhor, a fé faz viver.
“...Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá...”