Foi realmente marcante. A baia de águas calmas e verdes, as
montanhas no horizonte, as pedras como calçamento, as construções antigas e a
refrescante sombra da árvore em que eu esperava por meu pai. Sentado em um
banco de pedra em frente ao fórum de Paraty, eu assimilava as novas impressões.
Eu tinha dez anos de idade e era a primeira vez que visitava Paraty. Meu pai
havia sido intimado como testemunha a fim de depor sobre um colega de trabalho
que havia sido preso por consumo de maconha. Nos anos 80, isso era gravíssimo.
Ewerton Ralf Florenzano, o “Tom”, passara no mesmo concurso que
meu pai e, com ele, trabalhou por pouco tempo na Assessoria Legislativa da
Câmara dos Deputados. Extremamente inteligente (totalmente fora da curva!),
carismático e simples, o Tom caíra de paraquedas no serviço público. Seu
habitat, definitivamente, não era em uma sala fechada redigindo projetos
absurdos para deputados sem-noção. Mas assim quis o destino. O Tom viera do Rio
de Janeiro e frequentava assiduamente a casa dos amigos feitos na Câmara. Tom
vivia em outro mundo, inclusive quando estava na casa dos amigos. Era comum
perguntar sua opinião sobre algo e ter que esperar um “tempinho” pela sua
atenção. E, então, Tom finalizava a discussão com argumentos inquestionáveis.
Em minha infância, meu pai me estimulava a montar aeromodelos complicadíssimos
que nem mesmo ele conseguia. A solução dos dilemas de montagem vinha junto com
as visitas do Tom. Ele analisava as plantas e, apontando o dedo, sussurrava:
- Acho que é por aqui hein...
Pronto. O avião estava montado!
Amante de jipe e da vida outdoor, não ligava para os trajes que
vestia. Costumava entrar nas dependências da Câmara dos Deputados vestindo
sandálias de couro e camisas surradas. Era um hippie por exclusão. Certa vez,
subindo o Morro do Pai Inácio, na Bahia, sofreu uma queda e se quebrou todo.
Após meses de recuperação das diversas fraturas, retornou ao trabalho. Sorrindo
para os colegas de sala, nem se deu conta de que lhe faltavam todos os dentes
da frente.
- Nada de mais. Quando der eu arrumo, disse ele.
Do Tom herdei meu primeiro relógio digital. Um precioso Casio que até
cronômetro tinha. O querido Tom se suicidou com um tiro no queixo em uma
ensolarada tarde brasiliense. Era esquizofrênico. Apesar de menino, senti uma
enorme falta daquele “adulto” com alma de criança.
Muitos anos depois, lá estava eu, de frente para a baia de Paraty,
um pouco mais maduro, mas não menos admirado pela beleza e envolvimento do
local. Exatamente às 12h00min do dia 29 de agosto deste ano, após alocar todos
os equipamentos e víveres dentro de meu caiaque, eu deixava pela popa a Marina
do Farol. Pegando a ondulação de nordeste, remei contra até me abrigar atrás da
Ilha do algodão. Já no saco do Mamanguá, o vento me empurrou e, rapidamente,
cheguei aos pés do Pão de Açúcar, onde montei minha barraquinha. Já à noite, descansado
do dia, fiz meu jantar enquanto discutia psicanálise com três trekkeiros que
por lá também acampavam. Só Freud explica!
Finalizava o primeiro dia de viagem com meu caiaque. A ideia era
chegar a Maresias/SP seis dias depois.
O segundo dia amanheceu ensolarado fazendo um pouco de frio. Saí
às 08h00min a fim de evitar ventos mais fortes no decorrer do trajeto, pois
iria bordejar as pontas da Cajaíba e da Joatinga, locais expostos e sensíveis
em relação à navegação com embarcações como a minha.
Peguei vento contra até a ponta da Cajaíba. Ao contornar este
promontório, a ondulação e o vento ficaram favoráveis. O caiaque seguia
surfando bem! Registrei boas velocidades. Por vezes 9 km/h nas vagas. Parei na
Ponta da Joatinga para analisar o lado oposto da pequena porção de terra. O mar
estava perfeito. Comi algumas bisnaguinhas e segui viagem. Aproei em direção à praia
de Martim de Sá, onde lanchei e descansei um pouco. Senti o ombro
direito. Seguindo a remada, parei paralelamente à Ilha Cairuçu por alguns
minutos e alonguei os braços. O mar batia muito próximo ao costão, mas depois
de contornar a Ponta Negra, as coisas melhoraram. O mar acalmou, mas não meu
ombro. À noite, abri o kit de primeiros socorros e iniciei uma cartela de anti-inflamtório.
Aportei na Praia do Sono e procurei um camping no lado esquerdo da praia (onde
a arrebentação era menor) para facilitar minha saída no dia seguinte.
Havia a previsão de mudança de tempo para a quinta-feira e, diante disso, o
futuro de minha remada era incerto.
Ao acordar no dia seguinte, preocupado com as condições
meteorológicas, fui olhar o mar e percebi que a frente fria (vento sul) havia
chegado, como previsto. Ainda assim, julguei prudente partir e analisar o mar
no decorrer da remada. Porém, finalizando de acomodar as tralhas dentro do
caiaque, o vento aumentou de intensidade e deixou o mar muito crespo e mexido.
Pensei melhor e decidi abortar a remada do dia e aguardar que as
condições melhorassem. O lado negativo do descanso forçado foi que perdi
um dia de reserva dos que havia programado. Aproveitei para contemplar um pouco
a vida dos moradores locais.
Sem sinal de celular, tive a grata oportunidade de
"provar" a tranquilidade da Praia do Sono. Lá, todos se conhecem e se
cumprimentam. Como era dia de semana, pude, realmente, participar da rotina deles.
No camping em que fiquei, o Sr. Orlando terminava de fixar as ripas
do "puxadinho". Sempre de olho em novos turistas que frequentam
a praia. Já no mercadinho da vila, onde almocei, Dna. Gertrudes finalizava
de por a mesa carregando um de seus netos no colo. Contrariada, a criança só
pensava em andar pelo quintal. Sugeri a Dna. Gertrudes que deixasse a
criança solta. Fitando-me como se fosse lógico, ela explicou:
- É que esse menino não dá sossego às galinhas!
- Entendi, disse.
No quarto dia de viagem, parti às 09h25min com o tempo fechado e
chuvoso. Levei quase trinta minutos esperando uma brecha na arrebentação para
sair. As condições não eram as melhores, mas as direções da ondulação e do
vento ajudaram no início da remada.
Ao passar por Trindade, o mar ficou mais crespo e mexido.
Remada tensa e aspecto geral desanimador. Mantive o foco para equilibrar o
caiaque em meio a um turbilhão de ondas desconexas. Apesar de tudo, a progressão
seguia veloz. Acabei surfando várias ondas que me apanhavam pela popa. Creio
que fui empolgando e perdendo um pouco da concentração.
Ao entrar no estado de São Paulo, a condição do mar piorou. Remaria,
a partir de então, paralelo a um costão de pedras por cinco quilômetros. Em
condições de mar grande, não é o melhor local para se remar, pois a reverberação da ondulação que bate nas pedras se choca com novas ondulações que
vêm do oceano, formando um verdadeiro “liquidificador” de caiaques.
Encontrava-me na metade do trecho de costão, e, por um descuido na
navegação, derivei para perto das pedras, quando o caiaque ganhou velocidade encaixando
em uma ondulação e, ao mesmo tempo, recebeu uma marola do lado esquerdo. Pego
de surpresa, o que eu não desejava aconteceu: o caiaque virou!
Tudo aconteceu muito rápido. Quando percebi, eu estava com a
cabeça voltada para o fundo azul do Oceano Atlântico. Antes mesmo de pensar em
fazer o rolamento (procedimento em que o remador desvira o caiaque sem mesmo sair
de dentro dele), eu já procurava a alça da saia que permite que o cockpit do
caiaque fique estanque. Tentei manter a calma, puxei a alça e ejetei-me para
fora do cockpit. Quando pus a cabeça fora d'água e respirei, me perguntei: E o
remo? Por sorte, ele estava perpendicular ao caiaque. Desvirei o caiaque,
coloquei o remo dentro do cockpit, procurei por qualquer equipamento que
estivesse boiando e iniciei os procedimentos de auto-resgate. Dentro d'água e
paralelo ao caiaque, peguei a bomba e iniciei a retirada da água de dentro do
cockpit. Ocorre que o mar estava muito mexido e o trabalho se tornava em vão
toda vez que uma marola maior cobria o caiaque e enchia novamente o barco. Com
muito custo, tirei um pouco da água. Fui tentar subir de volta no caiaque e o
cockpit encharcou novamente. Imaginei, então, que se não conseguisse esvaziar o
caiaque, teria que nadar para a margem. Porém, a margem era só pedra e mata
fechada por cima. Não havia como se safar por ali. Sabia que estava sozinho e
que só eu poderia resolver aquela situação. Procurando manter a calma,
reiniciei os procedimentos de auto-resgate. Equilibrei-me em uma das bordas do
caiaque, com as pernas por baixo dele. Com movimentos decisivos, bombeei a água
quase toda pra fora do cockpit. Como o mar estava muito mexido, foi difícil
evitar que mais água retornasse para dentro. Guardei a bomba, calculei um
movimento brusco e certeiro e puxei meu tronco para cima das bordas do cockpit
do caiaque. Com muita cautela, passei uma das pernas para o outro lado do
caiaque (como em um cavalo). Viria, então, a parte mais complicada; colocar-me
para dentro do cockpit em meio àquele mar turbulento. Sentei dentro do cockpit com
as pernas para fora do caiaque, e, vagarosamente, passei as pernas para dentro.
Esse procedimento é relativamente fácil de realizar em condições normais, mas imagine
fazer tudo isso em meio a um mar de ressaca com ondas de quase 2 metros.
Adicione um céu cinza escuro, tempo frio, água a 18 graus Celcius e nenhuma
ajuda a menos de cinco quilômetros (por água!). Foi assim mesmo.
Reorganizei os equipamentos dentro do barco e continuei a remada. A
partir de então, sempre tenso com a possibilidade de uma nova capotada. Quicando
de uma onda para outra junto de meu barquinho, alcancei a praia de Cambury,
onde pensei em encerrar o dia. Contudo, a arrebentação do local não iria me
permitir zarpar no dia seguinte, e, diante disso, tomei a difícil decisão de
continuar remando naquele mar tenebroso até uma praia abrigada. Por longos quarenta
minutos, negociei com as ondas a cada remada até cruzar a ponta de Picinguaba,
onde finalmente, com mar mais protegido, relaxei. Segui até a ilha de Prumirim,
local onde me acolheu o Seu Ismael (dono do bar que lá funciona). Ouvindo
atento à situação que eu acabara de passar, Seu Ismael arregalou os olhos e comentou:
“Nossa! Você remou com a lestada?”.
Fui entender depois que a “lestada” era o famoso vento leste que
entra (quase sempre muito forte) na região complicando as condições de
navegação. Recompondo-me do susto, agradeci por ter finalizado o dia naquela pequena
ilha. São e salvo!
No quinto dia de viagem, tomei um café reforçado, despedi-me de
Seu Ismael e zarpei rumo a Ubatuba. O mar, apesar de grande, estava “navegável”.
Com o vento favorável, passei batido por Ubatuba e segui em direção à Ilha
Anchieta. Contudo, logo antes da Ponta Grossa, o mar encrespou, exigindo
atenção redobrada a cada remada. Uma capotada ali daria uma baita canseira para
resolver, como eu já sabia. Imaginei que, passando a Ponta Grossa, o mar
ficaria mais calmo. Só que não! O mar continuou mexido e com grandes vagas. Um
pouco nervoso, decidi que o melhor a fazer seria remar mais cinco quilômetros
até um ponto protegido. Finalmente, quando cruzei o través da Ilha Anchieta, as
coisas começaram a acalmar. Resolvi “baixar âncora” na praia do Lázaro e
naquela baia finalizar meu dia de trabalho.
Tendo como base a condição do mar dos dias anteriores, não sabia o
que esperar para os últimos trechos. Saí para o sexto dia de remada às 09h00min
com tempo bom. Abrigado na baia da praia do Lázaro, remei tranquilo por cinco
quilômetros. No decorrer da primeira hora, observei que, apesar de grande, o
mar não estava mexido nem crespo como antes. Animado com o bom tempo e as
condições favoráveis, decidi iniciar a travessia para Ilha Bela na frente da
praia do Simão, um pouco antes do planejado. Essa passagem seria a mais exposta
de toda a viagem. Aproximadamente duas horas remando a dez quilômetros da
costa. Qualquer problema nesse trecho, eu teria que me virar só. Era praticamente
impossível ser avistado da costa.
Além do quesito segurança, o fator motivacional foi crucial nesse
trecho. Longe da costa, sem referências, tem-se a impressão de não sair do
lugar quando se rema. A fim de motivar-me na travessia, dividi o trecho em três
partes. A cada parte, parava para me hidratar, comer e conferir a progressão no
mapa. Alguns atobás ajudaram a quebrar a monotonia do dia. Dando rasantes na
proa de meu caiaque, esses pássaros me divertiram um bocado.
Sem perceber, pisei a Ilha às 15h00min.
Ainda que me restasse um dia de remada para finalizar minha
viagem, a sensação de conquista de meu projeto era palpável. O pior havia passado,
com certeza.
Em Ilha Bela, gentilmente convidado pelos amigos Alessandro Matero
e André, deixei meu caiaque na guarderia Proa, uma das mais organizadas e profissionais
instalações que conheci para esse fim.
Com condições perfeitas, no último dia de viagem, zarpei às
11h40min. Poucos quilômetros me separavam da praia de Santiago (vizinha a
Maresias), local onde finalizaria minha viagem. Refletindo sobre os últimos
dias, segui remando pelo canal de Ilha Bela. Dias difíceis, dias tranquilos, chuva,
sol e experiências impagáveis. Apesar de alguns momentos de tensão, a viagem
havia sido bem sucedida. O que mais eu poderia desejar?
Sim, havia uma coisa.
Avistando a areia onde desembarcaria, desejei que todas as crianças
tivessem um “Tom” para influenciá-los.
1º dia 29/08/2017
Paraty - Saco do Mamanguá
Dist: 22,3km
2º dia 30/08/2017
Saco do Mamamguá - Praia do Sono
Dist: 40,8km
3º dia 31/08/2017
Tempo
ruim – Descanso Praia do sono
4º dia 01/09/2017
Praia do Sono - Ilha de Prumirim
Dist: 38,8km
5º dia 02/09/2017
Ilha de Prumirim – Praia do Lázaro
Dist: 31,4km
6º dia 03/09/2017
Praia do Lázaro – Ilha Bela
Dist: 44,3km
7º dia 04/09/2017
Praia do Lázaro – Ilha Bela
Dist: 22,2km
Agradecimentos:
Proa guarderia
Seu Ismael (Ilha Prumirim)
Zé Caputo
Tiago (barco Gladiador-Paraty)