domingo, 30 de outubro de 2016

Deserto do Jalapão


Diz a minha mãe que, quando eu era criança, eu costumava correr pela casa gritando: "Lá vem a biôooonica formiiiga atômica", em alusão a um desenho animado no qual uma formiga (com um capacete ridículo) possuía superpoderes.
Além de ter aguentado meus gritos, a então jovem Eneida teve que rebolar para administrar a dificuldade financeira, a faculdade de medicina e um filho não planejado!
Os anos passaram e nossas percepções de vida seguiram caminhos diferentes, gerando, naturalmente, alguns conflitos de opiniões.


Com o intuito de estar um pouco mais com minha mãe, além das visitas de final de semana, convidei minha progenitora para um passeio "light" no Jalapão, onde aproveitaria também para testar a tração de meu jipinho.
O parque estadual do Jalapão é uma unidade de conservação brasileira de proteção integral à natureza localizada na região leste do estado do Tocantins. Com diversos atrativos naturais, entre eles as famosas dunas do Jalapão, bolei um roteiro englobando os principais pontos de interesse, os quais eu pretendia percorrer em três dias.
Saímos de Brasília no dia 16 de outubro em direção a Luis Eduardo Magalhães, na Bahia, por onde adentramos no triângulo da soja. A partir de então, não vimos mais o asfalto. Chega a ser sufocante não ver nada além de infindáveis plantações de grãos e a interminável reta de terra a se seguir.
Optei por entrar no Jalapão pela cidade de Mateiros, pois, de acordo com a logística planejada, aproveitaríamos melhor o itinerário.
No primeiro dia no Jalapão, fomos direto ao morro da igreja, situado 30 quilômetros após a cidade de São Félix do Tocantins. Desta forma, voltaríamos a Mateiros passando pelos outros locais de interesse e, após dormirmos mais uma noite nesta cidade, seguiríamos para Ponte Alta do Tocantins, fechando o circuito estipulado.
Passamos pelo povoado de Mumbuca, uma comunidade de ex-escravos fugidos da Bahia, onde se originou o belo artesanato com capim dourado.
Dos inúmeros “fervedouros” que visitamos, sem dúvida, o Bela Vista merece uma atenção especial. O lugar é mágico. Os “fervedouros” do Jalapão são verdadeiros oásis em meio à vegetação do cerrado. Situam-se entre alguns brejos e riachos e formam belíssimos poços azuis turquesa. São nascentes de rios subterrâneos que surgem na superfície brotando da areia branca. A pressão da água é responsável pelo fenômeno da ressurgência, e isso impossibilita que alguém se afunde nos poços. Por mais que se esforce, a pressão nos empurra para cima.

Já no terceiro dia de viagem, seguindo em direção a Ponte Alta, paramos na Serra do Espírito Santo. Há uma dura trilha que dá acesso a parte alta, pela qual eu e minha mãe subimos relembrando algumas passagens de nossas vidas. De cima, pode-se apreciar o impressionante isolamento do Jalapão. Fora o belo cerrado e seus chapadões, não se avista nada até o horizonte. Com um calor infernal, uma pane mecânica no Jalapão não deve ser nada agradável. 

Do outro lado da Serra do Espírito Santo, avista-se uma grande erosão que deu origem às dunas do Jalapão, as quais fomos visitar na sequência. O contraste de cores nesse local é impressionante. No momento em que estávamos nas dunas, o tempo estava fechado e cinzento, o que acabou valorizando ainda mais a cor laranja da areia. Das dunas, seguimos para a cachoeira da Velha, distante 90 quilômetros de lá.


Os deslocamentos na região do Jalapão foram longos e lentos, pois, além da boa distância entre os atrativos, as estradas se encontravam abarrotadas de costelas-de-vaca e pontos com muita areia. Essa tortuosa progressão em meio ao nada permitiu que eu e minha mãe acertássemos antigas DRs! Questionando alguns comportamentos dela, conclui que o que realmente me incomodava nela era o fato de eu me comportar exatamente da mesma maneira. Não é fácil mexer na ferida!
Chegamos de noite a cachoeira da Velha. Já estávamos bem cansados e seguir até Ponte alta do Tocantins para retornar no dia seguinte nos custaria muito tempo. Decidi, então, tentar acampar na sede da fazenda onde situa-se a cachoeira da Velha. 
Diz-se por lá que esta fazenda era de propriedade de, nada mais nada menos, que Sr. Pablo Escobar e que havia uma velha senhora que segurava uma espingarda próximo à cachoeira a fim de cuidar do local. Daí o nome "Cachoeira da Velha". Segundo informado, a fazenda era usada como ponto de refinamento de cocaína. A julgar pelo isolamento da região, é perfeitamente compreensível a escolha de "Pablito".

Ao apontar os faróis de meu carro na varanda da sede, avistei quatro jagunços descamisados em volta de uma churrasqueira portátil ouvindo, em altíssimo volume, uma sequência de músicas brega. Encostadas na parede, havia seis garrafas (vazias) de Velho Barreiro. O coerente seria dar uma rápida ré em meu carro e dar o fora dali com a Dna. Eneida. Pensei imediatamente no quão isolados estávamos do mundo e no que minha pobre mãe poderia virar na mão daqueles toscos homens numa noite entediada daquelas... 
Aproximei-me com uma postura pacífica (quase com uma bandeira branca em punho) e expliquei a situação questionando a possibilidade de acampar por ali. Para meu espanto e contrariando o meu prejulgamento, o capataz da fazenda, Sr. Edimilson, nos acolheu e permitiu que acampássemos em uma das edificações abandonadas. Os outros três rapazes eram os responsáveis pela empresa Naventura, a qual opera o rafting no rio Novo. Enquanto bebiam mais uma garrafa de Velho Barreiro, eles me convidaram  para descer o rio no dia seguinte. Não tive como recusar.
A descida de um quilômetro inicia-se na cachoeira da Velha, passa por quatro corredeiras de classe III e termina em um belíssimo poço com praia de areia branca. A água é verde e a temperatura agradabilíssima. Diversão da melhor qualidade!
Após o rafting, resgatei minha mãe, que aguardava na praia do rio Novo, e seguimos para Ponte alta, onde dormimos. 
No nosso último dia no Jalapão, levantamos cedo e fomos para a pedra furada. 


Seguindo viagem, já aproando para o azimute de Brasília, fomos conhecer a cachoeira da Fumaça e a cachoeira do Rio do Sono. O acesso a esta última não é dos mais fáceis. O curto caminho que chega próximo das quedas é digno de um veículo 4x4. Sem ter muita experiência no assunto, contei com o precioso auxílio de Dna. Eneida para me guiar de fora do carro a linha certa a seguir pelas traiçoeiras pedras. 
Assim como quando era jovem, com um filho inesperado no colo, a vida para tocar e sem nenhuma noção de como educar uma criança, minha mãe me indicou o caminho que achava melhor pelas pedras e eu segui quicando dentro de meu jipinho até encontrar terrenos mais brandos, não sem antes derrapar pelas encostas e superar tocos inesperados. O paralelo não é mera coincidência. Tenho certeza de que minha mãe tentou fazer o melhor que podia para mim. Deve ser muito difícil educar um filho. Hoje sei que ela errou e acertou muito, mas o evidente é que aprendemos os dois com a vida. Como o Jalapão mostrou, a estrada é quase intransponível, mas, com calma e sensatez, se chega aonde se almeja. 
Ah sim, a cachoeira da fumaça é mesmo belíssima, assim como a vida, assim como minha mãe.         



À mãe mais biônica do mundo, minha eterna gratidão.

Manza.


"Você diz que seus pais não te entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer"
Renato Russo



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